Copa de Elite
Por vezes, nós, críticos, cinéfilos ou meramente interessados, deixamos passar algumas coisas, talvez não essenciais, mas interessantes de se discutir. Copa de Elite por exemplo. É uma comédia para o grande público, como tantas que saíram aí. Mas nem tanto.
O filme parte de outro lugar: não é uma comédia baseada no imaginário da televisão, mas na forma da paródia pop de David Zucker, dos irmãos Wayans, em especial, me parece, os filmes do Leslie Nielsen.
O centro de tudo não é o imaginário da classe média branca da zona sul carioca e suas “altas confusões”, mas o próprio imaginário consumido por essa classe média: os blockbusters brasileiros, tendo como ponta de lança Tropa de Elite. Daí deriva uma certa idéia de cultura pop brasileira manejada ao longo do filme: futebol, papa, Oscar, Mojelo, Bruno de Lucca, Anitta, filme de ação bem anos 80.
As comédias investiram muito de seu esforço em construir um imaginário que não precisava ser construído. A classe média já se reconhecia na TV: crise conjugal, consumo, relações recalcadas de classe. O cinema servia como certa sofisticação do pacote. Nele é possível tocar em alguns temas tabus como a sexualidade, mesmo que com certo pudor e sempre sem se comprometer com a quebra desses tabus, já que era possível tocá-los sem destruí-los com boas risadas e uma moral da história.
O fato novo em Copa de Elite é uma consolidação desse imaginário pop, sem necessidade de explicações ou desculpas. As coisas estão aí, o filme joga com elas. Me parece, nesse sentido, não pedir desculpas por ser quem é. Intuo que o filme marca um momento das comédias brasileiras de sucesso em que elas já criaram sua própria linguagem, sua própria fórmula originada da perversão da dramaturgia da TV, mas agora afasta e com vida própria – e problemas próprios, crises próprias .
Uma dessas crises continua a ser a sexualidade. Interessante sua esquizofrenia no filme: na mesma cena em que um “caralho voador” atravessa o quadro, a personagem aparece seminua com os seios cobertos por canecas de seios; fala-se em bunda, em cu, em caralho, mas nenhum corpo se expõe. E, por outro lado, existe a piada com Minha mãe é uma peça com Alexandre Frota fazendo a mãe do protagonista e sendo tratado como mulher o tempo todo, mas ele age como homem, não muda sua voz e vai ao banheiro mijar de pé. O sexo é ainda a barreira a ser atravessada, como se o público quisesse saber, mas não ver; é o pudor “retroalimentando” o despudor: olhe, mas não toque; fale, mas não deseje.
De qualquer forma, há uma mudança simbólica do status: o Brasil com síndrome de vira-latas já não parece existir. Há agora um país cosmopolita, inserido na ordem mundial do capital e capaz de fazer troça de suas próprias desgraças, não só da dos outros.
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Curioso o papel de Rafinha Bastos no filme: um ator ressentido que, sob a capa de uma celebridade simpática, quer apenas reafirmar seu próprio vestígio e deixar todos beijando seus pés. Por trás do altruísmo, um poço de raiva, ressentimento e desejo de menosprezar o outro. Por vezes pensei se o próprio Rafinha não percebia o espelhamento (acredito que involuntário) da personagem com ele mesmo. Outras vezes, ignorei a péssima atuação, pois acreditava numa verdade ali para além da dramaturgia. Não acho que isso é pouco.
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Muitas vezes, esquecemos que os filmes vivem num mesmo mundo, por mais distantes que habitem um do outro.
Copa de Elite e Ela Volta na Quinta vivem no mesmo Brasil, no mesmo tempo. São duas visões desse mundo completamente diferentes: o primeiro vê no imaginário popular do Brasil pós-Lula uma biblioteca de onde se pode extrair uma certa vivência e experiência de mundo; o segundo tira da experiência de estar no mundo de suas personagens um imaginário popular que retrata o Brasil pós-Lula. Mas, em essência, os dois partem de uma cultura brasileira cosmopolita, inserida na ordem mundial e no desenrolar da história. Brasil de consumo e consumidores; Brasil de afirmação de si no cenário cultural. É claro (volto a afirmar): os dois filmes habitam lugares diferentes, posicionam-se em setores diferentes da sociedade, do mercado e da cultura, o que se manifesta no interior das obras. Mas são ambos filhos do tempo, desse tempo.